Os manicômios – Parte II

Os manicômios (Parte II)

[AVISO: o texto a seguir tem como objetivo informar sobre o passado dos hospitais psiquiátricos, e não sobre o presente. Muito mudou com o tempo, e hoje a maioria dos hospitais psiquiátricos segue padrões humanizados de tratamento, fruto de muitos anos de luta de diversos setores da sociedade. As práticas aqui descritas não são mais utilizadas.]

No último post tratamos sobre o famoso hospício inglês de Bedlam. Falaremos hoje sobre um hospital psiquiátrico brasileiro. A principal fonte para esta breve texto é o livro “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex, um excelente trabalho investigativo e leitura recomendada para os interessados no assunto.

Descrito como “sucursal do inferno”, “porão da loucura”, “assassinato em massa” e “campo de concentração”, o Hospital Colônia de Barbacena foi um hospital psiquiátrico fundado em 1903 na cidade de Barbacena, MG. Existe até hoje, porém com nome de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. Neste local ocorreram os acontecimentos mais trágicos da psiquiatria brasileira.

Os pacientes da Colônia chegavam amontoados nos famosos “trens de louco”. A maioria que chegava nunca mais saía do hospital. Os homens eram separados das mulheres. Todos eram despidos e seus pertences confiscados, os cabelos dos homens raspados. Recebiam em seguida um uniforme padronizado e eram enviados para suas alas designadas. Muitos dos “pacientes” sequer tinham transtornos psiquiátricos, sendo apenas rejeitados pelos costumes da época: eram prostitutas, amantes, indigentes, homossexuais e pessoas com doenças neurológicas como epilepsia.

As condições de vida dentro do hospital sempre foram precárias. Em primeiro lugar, não havia quartos para todos. Os que tinham o privilégio de dormir sob um teto dormiam apinhados aos colegas. Os habitantes juntavam as camas para que menos pessoas precisassem dormir no chão. Mas muitos dormiam nos pátios abertos, sob chuva e vento. Como em Barbacena faz muito frio em algumas épocas do ano, esses habitantes dormiam uns sobre os outros na tentativa de se aquecer. Porém isso era inútil, e muitos dias amanheciam com o chão forrado de cadáveres, vítimas do frio. Nesses pátios corria o esgoto a céu aberto da instituição, cuja água por vezes era bebida pelos habitantes sedentos. Banheiras cheias de fezes e urina eram utilizadas para “tomar banho”.

Além da infraestrutura precária, havia o problema dos abusos. A eletroconvulsoterapia (a famosa “terapia de choque”, hoje instrumento terapêutico importante para tratamento de doenças mentais, era utilizada como forma de tortura e punição para pacientes que não obedeciam os funcionários ou a rotina do hospício. Não se usava anestesia alguma, e as cargas elétricas eram altíssimas. Não raramente os pacientes morriam durante o procedimento, e os corpos eram retirados do local apenas para que outro paciente tomasse o lugar na maca. Quando o choque não bastava, os pacientes eram injetados a força com sedativos, as chamadas “injeções de entorta”, que causavam contrações musculares por todo o corpo e salivação excessiva. Era uma forma de calar os pacientes “encrenqueiros”. A “ducha escocesa” era outra punição, um banho com jatos fortes de água gelada realizado sempre durante a noite. Abusos sexuais também eram corriqueiros, exercidos tanto pelos próprios pacientes quanto pelos funcionários, e era comum que crianças nascessem ali mesmo.

O grande número de mortos no Hospital Colônia alimentava as faculdades de medicina de todo o país com restos de cadáveres e peças anatômicas. Ao todo, 1.813 cadáveres foram vendidos para faculdades, principalmente a Federal de Minas Gerais (UFMG) em duas décadas, nenhum com autorização da família. O número de vendas dobrava no inverno, quando mais habitantes morriam de frio. Quando as faculdades já abarrotadas com peças anatômicas não quiseram mais comprar corpos, o Hospital Colônia os dissolveu em ácido no mesmo pátio em que haviam morrido.

Os absurdos que ocorriam lá dentro não eram segredo algum. Diversos jornalistas, profissionais da saúde e outros membros da sociedade civil denunciaram o Hospital, fizeram reportagens e documentários, lutaram dentro e fora da política. E, lentamente, a situação foi mudando. Os sobreviventes da colônia recebem hoje auxílio do Estado, morando em unidades de convívio, onde pela primeira vez tiveram direito à dignidade e à individualidade. Carregam até hoje as marcas do sofrimento, marcas que nunca desaparecerão, e que servem como lição para que a história não se repita.

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