O sonho como forma de esperança: a personagem Baleia, de Graciliano Ramos

Numa carta escrita à esposa, Heloisa de Medeiros Ramos, datada de 7 de maio de 1937, o escritor alagoano Graciliano Ramos registrou que havia escrito um conto sobre a morte de uma cachorra. No caso, ele não apenas asseverou que a empreitada era difícil, como também afirmou que procurava adivinhar o que poderia se passar na alma de um cachorro. Afinal, os cachorros têm alma? A cachorra que Graciliano Ramos mencionou, ainda personagem de um simples conto, estaria mais tarde em “Vidas Secas”, com o nome de “Baleia”. No livro “São Bernardo”, por outro lado, Graciliano Ramos também construiu um outro cachorro como personagem: o “Tubarão”. Baleia, no entanto, é mais marcante do que Tubarão. Baleia e Tubarão não estão ou vivem no mar. São cachorros de carne e osso.

A história das relações entre animais e seres humanos é uma das mais antigas e, assim, ambos vêm sendo colocados lado a lado, desde tempos que remontam aos primórdios da história da arte. A literatura brasileira é rica neste particular, oferecendo uma expressiva gama de figurações, destacando-se em sua produção animalista a presença do cachorro. Além de alentada produção esparsa, a ficção animalista brasileira deu oportunidade, por exemplo, ao surgimento, em 1947, da antologia “Dez Histórias de Bichos”, organizada por João Condé. Dez escritores entraram nessa “arca improvisada,” como a denominou o poeta Carlos Drummond de Andrade, que para ela escreveu uma espécie de prefácioA obra traz textos de Monteiro Lobato a Nélida Piñon. Mais recentemente foi publicada “A Linguagem dos Animais” com contribuições, para a zooliteratura brasileira, de Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

Nos termos de Otto Maria Carpeaux, o lirismo de Graciliano Ramos é amusical, adinâmico, estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um passado parnasiano do escritor. No mais, Graciliano Ramos é meticuloso, elimina tudo o que não é essencial. Essa premissa crítica é constatada nas tristes páginas de descrição da cachorra Baleia. O contraste entre o que evoca uma baleia e uma cachorra magra é desafiador. Na teoria literária, esse contraste lembra o oxímoro, uma figura de linguagem que confunde dois enunciados excludentes. Afinal, uma cachorra magra e doente não pode ser uma baleia.

Constata-se na narrativa de Graciliano Ramos que Baleia é uma cachorra de fato doente, que estava para morrer. Absolutamente magra, é desenhada como a cachorra cujas costelas avultavam em fundo ósseo e que resistiu a vários sofrimentos. Fabiano, o dono do animal, não vê outra alternativa senão sacrificá-la. Uma vida de pobreza e dificuldade, em um tempo muito diverso do nosso, não sugere proximidade ou possibilidade de cuidados veterinários. Fabiano havia tentado um rosário de sabugos de milho, queimados em torno do pescoço de Baleia, por quem sem dúvida tinha muito afeto.

Explica o narrador que Fabiano foi buscar a espingarda. As crianças da casa suspeitavam que Baleia corria perigo. E tinham razão. Baleia era uma pessoa da família. E a referência – pessoa – não é alegórica ou metafórica. A decisão de Fabiano, no entanto, era necessária. As crianças da casa se insurgem. A mãe, Sinhá Vitória, pretende controlar os filhos. Choram alto. O tiro de Fabiano atinge e inutiliza uma das pernas da cachorra. Baleia foge, em desespero. Corre com três patas. Um destino desconhecido que busca aos pulos. Perdia sangue. O narrador conta-nos que Baleia começava a andar como uma pessoa: com dois pés. Exausta, Baleia caiu, junto às pedras justamente onde os meninos da casa jogavam as cobras mortas. Queria morder Fabiano, mas não podia, era uma cachorra submissa. Sentia o cheiro dos preás, queria apanhá-los. Sentia a ameaça do objeto desconhecido. Na luta, lembrava ainda que precisava vigiar as crianças. Que angústia. Tremia. Uma onda fria tomava seu corpo. Queria dormir. E queria sonhar com um mundo cheio de preás. Queria sonhar que lambia a mão de Fabiano. Era um mundo de preás, gordos, enormes. Queria sonhar.

Graciliano Ramis, na figura de Baleia, nos dá uma lição de pureza, de inocência e de honestidade. Por intermédio de uma cachorra tocou no insondável mistério da alma humana, pelo menos no que somos no potencial de nossos sonhos. A Baleia, que à beira da morte sonhava com preás saborosos, pode ser puro exemplo de que é possível a fé sem certeza. Graciliano Ramos não caiu na tentação de explicar o mistério pelo próprio mistério. A fé que Baleia revelava ao fim de uma vida triste não excluía a precariedade. Essa é a dúvida que o narrador comunica ao leitor, em forma de solução que garante a paz. Tudo muito humano. Afinal, não há nada, absolutamente nada, que nos impeça de sonhar.

One Reply to “O sonho como forma de esperança: a personagem Baleia, de Graciliano Ramos”

  1. Amanda Barbosa says: Responder

    Impecável! Parabéns!

Deixe um comentário