Grande Sertão: Veredas — o sertão como labirinto da alma

Há livros que se deixam ler. Outros que nos leem. E há ainda aqueles — raros — que nos atravessam, como atravessamos o sertão, tateando caminhos entre veredas, sem saber ao certo onde começa a estrada e onde termina o mundo. Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é um desses livros-labirinto, desses espelhos rústicos que nos devolvem, em linguagem transfigurada, a própria condição humana.

A narrativa, conduzida pela voz torrencial de Riobaldo, não se limita a contar uma história. Ela é, sobretudo, uma travessia interior. O sertão que se desenha pelas palavras não é apenas geográfico, nordestino ou mineiro: é um sertão existencial, metafísico, tecido por dúvidas, presságios, medos e deslumbramentos. “O sertão está em toda parte”, diz o narrador, e com isso desloca o foco da paisagem para o abismo íntimo do homem.

O percurso de Riobaldo é marcado por constantes rupturas. Ex-jagunço, ex-professor, ex-nada — ele é uma figura da ambiguidade. Oscila entre a fé e o ceticismo, entre o bem e o mal, entre o desejo e a culpa. A travessia do sertão é também a travessia de si mesmo. Cada combate com os outros — Zé Bebelo, Hermógenes — é também um combate com seus próprios fantasmas. A dúvida obsessiva sobre se teria ou não feito um pacto com o diabo não é apenas um dilema teológico: é uma alegoria da responsabilidade moral diante da escolha. Riobaldo precisa saber se aquilo que fez foi dele ou de outro, se foi homem ou instrumento.

A linguagem de Guimarães Rosa é parte fundamental desse labirinto. Não é apenas forma, mas também substância. O português reinventado por Rosa restitui ao idioma uma vitalidade primitiva e arcaica, mistura de erudição e fala popular, de arcaísmo e neologismo, de precisão e delírio. O leitor é constantemente desafiado a se deslocar da linguagem cotidiana, a habitar um território verbal que exige atenção, entrega, escuta. Ler Rosa é como adentrar um matagal de palavras — e só aos poucos se percebe que cada palavra é uma vereda, e que cada vereda pode ser travessia ou desvio.

O sertão, nesse romance, é mais do que cenário: é estrutura, é tensão, é destino. É o lugar onde o bem e o mal não se apresentam em forma pura, mas se enroscam, se confundem, se imbricam. Não há maniqueísmo possível na ética rosiana. Hermógenes, a figura do mal absoluto, talvez nem exista fora da projeção que dele faz Riobaldo. E Diadorim, ao mesmo tempo amor e interdito, pureza e contradição, é a encarnação mais pungente do enigma. Amar Diadorim é, para Riobaldo, amar o indizível, o impensável — e esse amor é o fio que costura todo o romance, ainda que jamais se concretize em gesto.

No sertão de Rosa, as veredas não levam apenas a outros lugares: levam também a outros tempos, outras dimensões do ser. O romance, embora firmemente ancorado em um tempo histórico (o Brasil da jagunçagem, das insurreições locais, das disputas fundiárias), escapa à cronologia. Riobaldo narra no passado, mas tudo parece acontecer no presente de sua fala, num tempo que é ao mesmo tempo reminiscência e recriação. A memória, nesse sentido, não é documento: é invenção, é ato de escavação do sentido da própria vida.

A religiosidade popular atravessa toda a narrativa. Mas não como doutrina ou ortodoxia — e sim como pulsação, como angústia teológica que se mistura ao cotidiano. O pacto com o diabo, jamais confirmado nem negado, é também símbolo do desejo humano de controle sobre o destino. Riobaldo quer vencer, quer ser grande, quer transformar-se — mas o preço disso é uma inquietação que jamais se dissolve. E no fundo, o que o romance parece dizer é que o verdadeiro pacto é aquele que fazemos conosco mesmos: o de nos perdermos para, quem sabe, nos encontrarmos em algum ponto.

Grande Sertão: Veredas é, portanto, uma odisseia sem mapas. Um épico sem herói. Um romance sem centro. Tudo nele é desvio — e é nesse desvio que a alma se revela. O sertão não se deixa reduzir: ele é movimento, é conflito, é pergunta. E talvez por isso ainda nos fascine. Porque no fundo, todos temos um sertão a atravessar.

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