Akaki Akákievitch só precisava de um capote novo.
Nikolai Vassílievitch Gógol (1809–1852), mais conhecido como Gógol, foi um dos maiores escritores russos. Nascido em 1º de abril de 1809, na Ucrânia (então parte do Império Russo), era de uma família abastada e, desde jovem, demonstrou talento para a escrita. Viveu em um período efervescente da Rússia czarista, um vasto império autocrático e rigidamente estratificado. Sob o governo do Czar Nicolau I (1825–1855), a sociedade era marcada pela servidão, pela burocracia ineficiente e pela censura. Esse cenário de tensões sociais e políticas culminaria, mais tarde, em reformas e revoluções.
Além das transformações políticas e econômicas, a Rússia passava por mudanças culturais significativas. O avanço industrial e o crescimento das cidades impulsionaram novas expressões artísticas. Na literatura, o romantismo, até então predominante, começava a dar lugar ao realismo, que se propunha a expor as injustiças sociais e os horrores da guerra, como a Revolta Dezembrista de 1825. No teatro, os espetáculos abordavam traições, corrupção e abusos de poder, refletindo o descontentamento crescente da população.
Foi nesse contexto que, em 1842, Gógol publicou O Capote, um dos contos mais marcantes da literatura russa. A obra expõe as desigualdades da Rússia czarista e o contexto social, cultural e econômico da época por meio da história de AkákiAkákievitch, um humilde funcionário público de São Petersburgo.
No início da narrativa, acompanhamos a rotina monótona de Akáki Akákievitch, um homem simples e tímido, com recursos financeiros mínimos, que sobrevive com muito pouco. O ritmo do conto se intensifica à medida que o inverno se aproxima e Akákipercebe que não tem escolha senão substituir seu velho capote, peça essencial para enfrentar o frio rigoroso da Rússia. O casaco, já remendado inúmeras vezes, encontra-se em estado deplorável e não é mais capaz de aquecê-lo.
Diante disso, ele procura o alfaiate Petrovitch para avaliar a possibilidade de mais um conserto. No entanto, Petrovitch recusa a tarefa, alegando que o capote está tão desgastado que não há mais como remendá-lo. Em vez disso, sugere que Akákiencomende um capote novo – algo que, inicialmente, parece impossível devido ao alto custo. Após muito lamento e tentativas de convencer o alfaiate a consertar o velho casaco, Akáki finalmente aceita a realidade e pede que Petrovitch aguarde alguns dias para que ele possa juntar o dinheiro necessário. A partir daí, Gógol nos apresenta a penúria do protagonista e seus esforços extremos para economizar a quantia necessária para comprar um novo capote.
O conto nos permite compreender as dificuldades enfrentadas pelo personagem para conseguir o valor para o novo capote:
“Chegando em casa, [Akáki] sentava-se à mesa e comia a sopa de repolho e beterraba e mais as moscas ou que quer que o Senhor houvesse por bem mandar. Quando havia, comia um pedaço de carne ou pão e, sentindo o estômago cheio, levantava-se da mesa e ia copiar documentos que trouxera para casa” (GÓGOL, 2008, p. 12).
Gógol, então, desenvolve a crítica realista presente em O Capote, abordando diversas facetas da Rússia imperial do século XIX. O conto evidencia as mazelas da vida urbana emergente em São Petersburgo e a persistência do feudalismo russo, um sistema arcaico que ainda predominava no país. A forte ligação entre a burguesia e a aristocracia, aliada à rígida estratificação social, molda significativamente a condição de AkákiAkákievitch.
Além disso, Gógol expõe a degradação moral e o afastamento das classes dominantes em relação às camadas populares. Um exemplo claro disso é o tratamento que Akákirecebe em seu ambiente de trabalho: ele é constantemente alvo de desdém e zombaria por parte de seus colegas, que, em uma hierarquia burocrática, sentem-se no direito de humilhá-lo. Ridicularizam tanto sua timidez e dedicação exclusiva ao trabalho – única forma que encontra para sobreviver – quanto suas vestimentas, já bastante desgastadas.
A burocracia era o pilar do Estado, e os funcionários públicos eram rigidamente classificados em tabelas de serviço, com poucos direitos e salários frequentemente baixos. Esses trabalhadores eram, muitas vezes, socialmente invisíveis – exatamente como Akáki Akákievitch. No conto, ele não é tratado como um indivíduo, mas como uma peça da engrenagem burocrática. Sua vida se resume a copiar documentos mecanicamente, sem ambições ou vida social, refletindo a alienação dos funcionários públicos da época.
O trabalho de Akáki consiste apenas na repetição exaustiva de tarefas, sem qualquer criação ou propósito além do cumprimento de suas obrigações diárias. Essa condição remete à teoria de Karl Marx sobre a alienação do trabalhador, que ocorre quando ele perde a conexão com o produto de seu trabalho e se torna apenas um instrumento do sistema econômico. Akáki Akákievitch é um exemplo clássico desse fenômeno, ilustrando, de maneira magistral, como o indivíduo pode ser esmagado pela estrutura burocrática e social que o cerca.
A condição de desprezo e exclusão social vivida por Akáki Akákievitch não se limita ao ambiente de trabalho; ela se estende também a desconhecidos. Após muito esforço para economizar o dinheiro necessário, ele finalmente encomenda um novo capote ao alfaiate Petrovitch, que o confecciona conforme combinado e com muito cuidado e empenho.
No momento da entrega de seu novo capote, Akáki fica profundamente emocionado. Durante dias, dedica um cuidado extremo à peça, evitando qualquer sujeira ou desgaste. O capote novo se torna um símbolo de conquista e dignidade para ele.
Quando Akáki chega ao trabalho vestindo o capote, sua rotina muda inesperadamente. Até então ignorado e ridicularizado pelos colegas, ele passa a receber elogios e atenção. Aqueles que antes zombavam dele, agora o tratam com mais consideração. O reconhecimento, mesmo que superficial, provoca nele um sentimento inédito de pertencimento.
Um dos funcionários sugere que o novo capote deve ser “batizado”, ou seja, comemorado. Assim, Akáki é convidado para uma pequena festa na casa de um colega, algo completamente fora de sua rotina. No evento, há comidas, bebidas e conversas animadas, mas ele se sente deslocado e desconfortável, ansioso para ir embora.
Ao deixar a festa tarde da noite, a história toma um novo rumo. No caminho de volta para casa, Akáki é atacado por ladrões, que lhe roubam o capote. O choque e o desespero o dominam: aquele objeto que representava sua dignidade é brutalmente arrancado, evidenciando a crueldade da sociedade e sua indiferença pelos mais fracos.
Diante do roubo, a reação imediata de Akáki é procurar as autoridades em busca de ajuda. No entanto, ao recorrer à polícia, ele se depara com o mesmo desprezo e descaso que sempre enfrentou. Em vez de assistência, recebe indiferença, reforçando as discrepâncias hierárquicas da sociedade. A forma como é tratado demonstra a opressão sofrida pelos trabalhadores pobres diante daqueles que ocupam cargos de maior poder, revelando o ciclo de negligência e abuso que permeia a estrutura social.
[O General] Vendo a postura humilde e o uniforme surrado de Akaki Akakievitch, virou-se para ele e gritou com o tom de voz que havia ensaiado diversas vezes diante do espelho antes de se tornar chefe: – O que quer? Akaki Akakievitch pareceu desabar, mas juntando suas últimas forças, relatou tudo que lhe acontecera, intercalando ainda mais partículas de valor gramatical nulo do que costume. (GÓGOL, 2008, p. 17).
Os trajes surrados de Akáki após o roubo evidenciam as diferenças sociais entre ele e o general a quem recorre em busca de ajuda. A valorização da aparência e a hierarquia rígida da sociedade, que determinava como cada classe deveria ser tratada, são aspectos centrais do conto. A humilhação vivida por Akáki ao não ser atendido pelas autoridades após o assalto reforça a brutalidade de sua jornada: ele lutou arduamente para conseguir seu capote, privando-se de necessidades básicas como alimentação e conforto, apenas para perdê-lo de forma abrupta e violenta.
Essa realidade, embora retratada no século XIX, mantém-se contemporânea. Assim como Akáki, muitas pessoas lutam para conquistar seus bens e veem seus esforços frustrados pela alta criminalidade e pela ausência de assistência do Estado. A impunidade e a indiferença das autoridades diante do sofrimento das camadas mais pobres perpetuam um ciclo de exclusão e opressão. Além disso, a trajetória de Akákirevela uma crítica contundente à alienação do trabalhador: sua vida gira exclusivamente em torno do trabalho, ao qual se dedica de forma mecânica e resignada, sem jamais questionar sua condição. Esse comportamento, naturalizado pela sociedade, gera conformismo, obediência e subserviência, transformando o trabalho em um fardo desprovido de propósito, reduzido apenas à lógica da sobrevivência.
O fim de Akáki é trágico. Após a falta de solução para o roubo de seu capote e o completo descaso das autoridades, ele adoece e morre de maneira miserável e solitária. Sua morte simboliza a anulação completa de sua existência, um reflexo do quanto era ignorado em vida. No entanto, a narrativa não termina com seu desaparecimento físico.
Após sua morte, uma atmosfera fantasmagórica toma conta da história: o espírito de Akáki passa a vagar pelas ruas de São Petersburgo, roubando capotes dos funcionários públicos. Essa reviravolta sobrenatural adiciona uma camada de ironia ao conto, pois, ainda que tardia, sua vingança recai sobre aqueles que o desprezaram e o negligenciaram. A aparição espectral de Akáki não apenas subverte a lógica opressora que marcou sua vida, mas também reforça a crítica de Gógol à insensibilidade social e à rigidez burocrática.
O capote, enquanto objeto simbólico, representa muito mais do que uma proteção contra o frio: ele encarna o desejo de dignidade, pertencimento e reconhecimento social. A partir do momento em que Akáki conquista esse bem, sua vida ganha, brevemente, algum sentido e visibilidade. No entanto, a brutalidade do roubo e, sobretudo, o descaso das autoridades em ajudá-lo revelam a fragilidade dessa conquista e a dureza de uma sociedade que nega humanidade aos mais humildes.
Não por acaso, Dostoiévski afirmou que “todos nós saímos de O Capote de Gógol”. Com essa declaração, o autor de Crime e Castigo reconhece a importância seminal do conto na literatura russa, especialmente na consolidação do realismo. A frase sintetiza o impacto duradouro da obra de Gógol, que abriu caminhos para grandes escritores posteriores ao tratar com profundidade e sensibilidade temas como a miséria humana, a indiferença social, a burocracia opressora e a alienação do indivíduo. O Capote não apenas influenciou a estética de sua época, mas também moldou a forma como a literatura poderia ser usada como instrumento de denúncia e reflexão sobre a condição humana.
Gógol, com sensibilidade e acidez, antecipa questões que permanecem atuais: a desigualdade social, o valor atribuído ao consumo e à aparência, a alienação no trabalho e a falta de empatia nas relações institucionais. O Capote é, portanto, mais do que um conto realista; é um retrato atemporal da luta por dignidade em um mundo que frequentemente ignora os que vivem à margem.

Oi, sou a Amanda! Tenho 24 anos, estudo Letras com habilitação em alemão pela Universidade de São Paulo e sou uma entusiasta apaixonada por literatura e arte. Me perco nos clássicos russos, alemães e ingleses, encontro beleza na música e, quando se trata de nossa literatura brasileira, Clarice Lispector é meu porto seguro. Aqui no blog, divido minhas reflexões e descobertas literárias e afins.