Cinema Novo: influências e transformações no cinema brasileiro

A década de 1960 foi um período de profundas transformações sociais, culturais e políticas. O mundo vivia em uma crescente de novidades. Diversos movimentos emergiram para moldar os tempos modernos, impulsionando os avanços na cultura, sociedade, moda, música, tecnologias, televisão e cinema. 

No cenário global, a Guerra Fria acirrava as disputas ideológicas, e o Muro de Berlim era erguido em 1961, dividindo a Alemanha em duas. Nos Estados Unidos, em 1963, Martin Luther King liderou uma histórica manifestação em Washington, reunindo mais de 200 mil pessoas em defesa dos direitos civis da população negra. No mesmo ano, o presidente John F. Kennedy foi assassinado durante uma visita a Dallas, no Texas. Paralelamente, o movimento hippie começava a ganhar força entre os jovens, promovendo ideais de paz e contracultura. Enquanto isso, a Guerra do Vietnã se intensificava, gerando repressão e preocupação mundial. Por fim, em 1969, a chegada do homem à Lua, com Neil Armstrong dando o primeiro passo em solo lunar, marcou uma nova era na exploração espacial. 

No Brasil, a política passava por momentos de turbulências. Após o fim do governo de Juscelino Kubitschek e a breve e conturbada gestão de Jânio Quadros, que renunciou poucos meses após assumir o cargo, seu vice, João Goulart, tomou posse sob forte oposição militar e política. Goulart tentou implementar reformas de base — agrária, educacional e econômica —, o que gerou resistência da elite e dos militares, que o acusavam de simpatizar com as bases de esquerda. Em 31 de março de 1964, um golpe militar o depôs, instaurando uma ditadura que duraria até 1985. 

No âmbito cultural, o Brasil vivenciou uma intensa efervescência. Na música, a Bossa Nova, com João Gilberto e Tom Jobim, ganhou projeção internacional. A MPB se consolidava com a ascensão de artistas que trouxeram sofisticação musical e letras engajadas, como Chico Buarque, Elis Regina, Nara Leão, Edu Lobo e Milton Nascimento, entre outros. Igualmente, o samba passava por uma renovação, fortalecendo o chamado Samba de Raiz, com nomes como Cartola, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Nelson Cavaquinho e Dorival Caymmi, além de grupos como Os Originais do Samba e o 

Conjunto Nosso Samba, entre outros. No jornalismo, revistas como Realidade e O Pasquim trouxeram uma abordagem crítica e inovadora. Outro cenário importante dessa época foi a sétima arte, o cinema. 

A década de 1960 foi um período de grande inovação para o cinema, tanto no Brasil quanto no mundo. Esse foi um momento de considerável desenvolvimento estético, marcado por transformações que redefiniram a linguagem cinematográfica. No Brasil, o chamado Cinema Novo, emergiu como um movimento revolucionário, consolidando um cinema mais crítico e politizado.  

As novas correntes cinematográficas europeias exerceram uma forte influência sobre os cineastas brasileiros, especialmente o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague francesa e até mesmo o cinema soviético, a exemplo do filme Eu Sou Cuba (1964), de Mikhail Kalatozov. Essas referências ajudaram a redefinir a estética e a narrativa do cinema nacional, abrindo novos caminhos e ampliando as possibilidades artísticas da sétima arte no Brasil. 

O Cinema Novo emergiu como um movimento contestador, em oposição ao cinema comercial tradicional, dominado por produções de grande apelo popular, como musicais, comédias e narrativas inspiradas no modelo hollywoodiano. Priorizando a liberdade narrativa, o movimento adotou câmeras na mão como o modelo Arriflex 16mm e 35mm, uma câmera portátil, resistente e prática, ideal para filmagens externas e para o estilo de cinema independente; para as gravações, era preferível locações reais, afastando-se dos estúdios para capturar a essência da vida cotidiana e as diferentes camadas sociais, trazendo histórias da realidade brasileira. 

Jean-Luc Godard, um dos principais cineastas da Nouvelle Vague francesa, teve uma influência marcante no Cinema Novo, especialmente ao introduzir narrativas fragmentadas e experimentais, como as produzidas nos filmes Acossado e O Desprezo — este último estrelado por Brigitte Bardot, um dos ícones culturais dos anos 1960. Godard também quebrou com as convenções do cinema tradicional ao fazer seus personagens falarem diretamente com a câmera, rompendo a quarta parede, recurso amplamente adotado por Glauber Rocha no Brasil. Além disso, seu uso inovador do som, combinando ruídos e trilhas sonoras contrastantes, contribuiu para intensificar o realismo e a expressividade das cenas. 

O Cinema Novo brasileiro foi dividido em três fases, cada uma marcada por diferentes abordagens e transformações. Ao longo do tempo, o movimento desenvolveu narrativas distintas, adaptando-se e evoluindo de forma progressiva. 

A primeira fase (1960-1964) ocorreu antes da instauração da ditadura militar no Brasil e se destacou por abordar temáticas sociais que eram raramente exploradas no cinema nacional até então. O objetivo dessa fase era retratar a realidade brasileira sem filtros, abordando questões como fome, violência, alienação religiosa e exploração econômica. As periferias e o sertão tornaram-se cenários frequentes, com uma estética documental, na qual a edição e o enquadramento não eram os principais focos, mas sim o meio de denúncia social. 

Foi nesse cenário que surgiu o conceito da Estética da Fome, idealizado pelo cineasta Glauber Rocha. Ele defendia que o cinema brasileiro precisava expor a miséria do país de maneira crua e contestadora, contrastando com o cinema comercial que muitas vezes omitia esse fato. Para Rocha, a representação da pobreza não deveria gerar compaixão, mas sim incitar indignação e estimular a conscientização política. 

Glauber Rocha foi um dos nomes mais influentes do Cinema Novo. Suas ideias se aproximavam da concepção brechtiana de teatro, onde a arte não apenas reproduz a realidade, mas a expõe de forma crítica. Para ele, o cinema deveria servir como um instrumento de reflexão e transformação social, denunciando as condições do povo brasileiro e questionando a passividade diante desses problemas, ainda que mantendo certo otimismo quanto ao poder da conscientização visual do público. 

Em 1964, Glauber Rocha lançou Deus e o Diabo na Terra do Sol no Festival de Cannes, na França. O filme aborda de maneira brutal e estilizada a miséria e o fanatismo religioso no sertão, sendo indicado à Palma de Ouro e tornando-se um marco do cinema brasileiro. 

Era comum o manejo da câmera na mão para captar a realidade de forma espontânea e imersiva. Um exemplo é Maioria Absoluta (1964), de Leon Hirszman, um documentário que percorre os sertões de Pernambuco e Paraíba para relatar o analfabetismo e os problemas sociais da região. 

Como definiu o cineasta Cacá Diegues sobre essa fase do Cinema Novo: 

“Os cineastas brasileiros (principalmente no Rio, na Bahia e em São Paulo) levaram suas câmeras e saíram para as ruas, o interior e as praias em busca do povo brasileiro: o camponês, o trabalhador, o pescador, o morador das favelas.” 

Outros filmes de grande relevância na primeira fase do Cinema Novo brasileiro incluem:

Rio, 40 Graus (1955) – Nelson Pereira dos Santos;  

O Pagador de Promessas (1962) – Anselmo Duarte; 

Vidas Secas (1963) – Nelson Pereira dos Santos;  

Ganga Zumba (1963) – Cacá Diegues. 

Os Fuzis (1964) – Ruy Guerra. 

A segunda fase do Cinema Novo (1964–1968) começou após o golpe militar que depôs o presidente João Goulart e instaurou a ditadura no Brasil. Diante do insucesso da primeira fase em sensibilizar o público para as questões sociais, os cineastas redefiniram suas estratégias narrativas. Os filmes desse período passaram a expressar a inquietação e o impacto de um país submetido a um regime autoritário. 

Se na primeira fase o cinema era mais realista e documental, agora os cineastas recorreram a alegorias e metáforas para criticar a situação política do país e driblar a crescente censura. O uso de simbolismos tornou-se uma estratégia essencial para retratar a repressão e os conflitos políticos, antecipando o endurecimento do regime. Além disso, a crítica ao populismo e à falência das esquerdas brasileiras tornou-se um dos principais temas das produções desse período. 

Um dos filmes mais icônicos dessa fase é Terra em Transe (1967), também de Glauber Rocha, que apresenta uma crítica feroz ao populismo e à elite política brasileira, consolidando o uso da linguagem simbólica como ferramenta de resistência no cinema nacional em uma clara alusão ao regime autoritário brasileiro da época.  

Outros filmes de grande relevância na segunda fase do Cinema Novo brasileiro incluem: 

O Desafio (1965) – Paulo César Saraceni. 

O Bravo Guerreiro (1968) – Gustavo Dahl. 

Fome de Amor (1968) – Nelson Pereira dos Santos 

A terceira e última fase do Cinema Novo (1968–1972) refletiu um período de intensificação da repressão às manifestações artísticas e sociais no Brasil. Com o endurecimento da censura a partir do Ato Institucional nº5 (AI-5), os cineastas tiveram que adaptar suas produções a novas estratégias narrativas.   

A crítica social tornou-se menos direta e mais subjetiva, resultando em filmes com um viés menos político. Ainda assim, a tentativa de contestação ao regime tentava persistir, manifestando-se por meio do uso de fantasia, realismo mágico e ironia como formas de driblar a repressão.  

Foi nesse período que a censura se intensificou, levando grandes nomes da cultura artística nacional, incluindo cineastas do Cinema Novo, ao exílio devido à perseguição do Estado. Em 1969, foi criada a Embrafilme, e o cinema nacional passou a produzir uma grande quantidade de longas-metragens alinhados ao regime militar. Esse novo direcionamento do audiovisual fez com que, em 1970, o movimento do Cinema Novo se dissolvesse, sendo substituído por produções voltadas aos interesses da ditadura. 

Alguns dos filmes mais marcantes da terceira fase do cinema novo incluem:   

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) – Glauber Rocha   

Macunaíma (1969) – Joaquim Pedro de Andrade   

Os Herdeiros (1970) – Carlos Diegues   

Como Era Gostoso o Meu Francês (1971) – Nelson Pereira dos Santos   

São Bernardo (1972) – Leon Hirszman   

A terceira e última fase do Cinema Novo encontrou no Tropicalismo, um dos movimentos mais significativos do Brasil nos anos 1960, uma importante fonte de inspiração. O Tropicalismo, liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, emergiu no final da década de 1960 como um movimento cultural inovador, com a música como principal meio de expressão, mas também influenciando diversas outras áreas artísticas, a exemplo do cinema. Caracterizou-se pela hibridização cultural e pela incorporação de elementos de diferentes tradições, como samba, música clássica, rock, bossa nova, música folk e até experimental. Os artistas tropicalistas não buscavam o purismo de estilos, mas sim a fusão de influências diversas. Entre os principais nomes do movimento, destacam-se Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e Torquato Neto. Seu ponto de partida foi o lançamento do álbum Tropicalia ou Panis et Circencis (1968).

Por fim, o  legado do Cinema Novo no Brasil é profundo e multifacetado, abrangendo não apenas o cinema, mas também influenciando outras formas de arte e a cultura nacional como um todo. O movimento, que começou na década de 1960 e passou por diferentes fases, transformou a produção cinematográfica brasileira, deixando reflexos que são sentidos até hoje. Destacou-se por sua postura engajada e crítica, especialmente durante a ditadura militar. Cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues usaram o cinema para denunciar as desigualdades sociais e políticas, trazendo temas como classe, racismo, pobreza e autoritarismo para as telas, resultando em clássicos atemporais como Vidas Secas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), que ilustram a dureza da vida no sertão nordestino e os dilemas da pobreza. 

Seu impacto também se estendeu a outras áreas, como as artes visuais, a música, o teatro e a literatura, criando um novo olhar sobre a cultura brasileira. Artistas de diversas áreas, como o Teatro Arena com o espetáculo Opinião (1964), dirigido por Augusto Boal, também foram influenciados pelo movimento.  

Em 1993, a música Cinema Novo foi lançada por Gilberto Gil e Caetano Veloso, como parte do álbum Tropicália 2, fazendo uma homenagem ao movimento e relembrando sua importância na cultura brasileira.  

Logo, o cinema brasileiro contemporâneo ainda carrega a marca do Cinema Novo, seja nas temáticas sociais que continuam a ser exploradas, como as desigualdades, ou na estética realista e experimental que busca dar voz aos marginalizados. A retomada do Cinema Brasileiro nos anos 1990, após o fim da ditadura, refletiu o movimento iniciado nos anos 1960. Cineastas como Fernando Meirelles, José Padilha, Guel Arraes, Walter Salles — este último, diretor do aclamado filme Ainda Estou Aqui, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional — entre outros, procuraram dar continuidade a um cinema que dialogasse com as questões sociais e políticas contemporâneas do Brasil. Suas inovações estéticas, engajamento político e reflexão crítica sobre a realidade brasileira continuam a influenciar cineastas e artistas, abrindo caminho para uma nova abordagem cultural que ainda ressoa em diversas produções no país, inspirando gerações de artistas e cineastas comprometidos com a reflexão, a resistência e a renovação do pensamento cultural. 

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