A experiência epifânica em “Amor”, de Clarice Lispector

Em 2024, Clarice Lispector completaria 104 anos. Uma das figuras mais emblemáticas da literatura brasileira, reconhecida por sua profunda capacidade de explorar a subjetividade humana, Clarice é frequentemente descrita como uma “esfinge misteriosa” por alguns leitores, enquanto outros a veem como uma voz que provoca um intenso confronto com a realidade.

Após mais de oito décadas da publicação do primeiro romance “Perto do Coração Selvagem” (1943), estreia de Clarice Lispector no cenário literário brasileiro, sua obra continua a ser objeto de estudos de professores, críticos, pesquisadores e editores. A complexidade e a profundidade de seus escritos revelam constantemente novos significados, mantendo sua produção literária relevante e instigante para as mais diversas áreas de pesquisa.

Clarice Lispector, em sua formação literária, foi profundamente influenciada por diversas obras que contribuíram para moldar sua escrita, muitas das quais apresentam afinidades temáticas e estilísticas com sua produção. Entre essas influências, destacam-se os escritos do autor irlandês James Joyce, cuja abordagem inovadora da linguagem proporcionou a Clarice um modelo para explorar as camadas ocultas da realidade. Em particular, a noção de epifania, conceito utilizado muitas vezes por Joyce, e particularmente significativo no desenvolvimento da estética literária de Clarice, sendo recorrente em suas narrativas como o momento de transformação e auto descoberta de seus personagens.

James Joyce explora a epifania em suas obras como um momento de revelação súbita, no qual ocorre uma iluminação espiritual e emocional, frequentemente desencadeada por eventos cotidianos ou aparentemente banais. Esses instantes epifânicos, revelam verdades profundas sobre a vida e a condição humana, tornando-se elementos centrais na narrativa, possibilitando uma reavaliação da realidade por parte das figuras literárias. Essas característica também se faz presente na obra de Clarice Lispector, que, ao longo de seus romances e contos, retrata personagens que vivenciam momentos de epifania e transmitem aspectos ocultos de sua existência, tornando sua escrita distinta e singular, como revela a análise de Nádia B. Gotlib:

“em todos os contos cujo núcleo é justamente esta percepção reveladora de uma dada realidade, a teoria torna-se fundamental para a sua leitura. É o caso dos contos de Clarice Lispector, por exemplo” (GOTLIB, 1991, p. 52).

O cotidiano e a normalidade são temas recorrentes na obra de Clarice Lispector, frequentemente abordados com uma sensibilidade que os torna, ao mesmo tempo, universais e profundamente particulares. Um exemplo significativo dessa exploração é o conto “Amor”, que integra o livro Laços de Família (1960). Neste conto, Clarice Lispector utiliza sua escrita introspectiva para mergulhar nos conflitos internos de uma personagem aparentemente comum, mas que, ao longo da narrativa, é confrontada com uma experiência transformadora que altera profundamente sua percepção de si mesma e do mundo ao seu redor.

A protagonista, Ana, é uma mulher casada, mãe de dois filhos e dona de casa, que leva uma vida rotineira e organizada. No início do conto, ela se sente satisfeita com sua existência previsível, encontrando na ordem doméstica uma fonte de segurança e estabilidade. Contudo, à medida que o conto se desenrola, um acontecimento aparentemente trivial, abre uma ruptura no conceito que Ana considera como realidade. Este momento decisivo ocorre quando ela, ao voltar para casa de bonde, após fazer compras, recosta-se no banco, tentando encontrar conforto, e se depara com a imagem de um homem cego mascando chicletes. A princípio, essa cena pode ser vista como algo superficial, porém, ela acaba se tornando o ponto de partida para um processo de desordem emocional que abala a vida de Ana. Transtornada pela cena, Ana deixa cair o saco de compras que carregava no momento em que o bonde arranca:

“Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume.[…] O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. “

O encontro de Ana com o cego representa um momento epifânico que revela a fragilidade da ordem e do sentido que ela atribuía à sua vida. O cego, nesse contexto, simboliza o inesperado, o que escapa ao seu controle e a força que a obriga a confrontar aspectos da sua existência que ela sempre evitou: a desordem, o caos e a imprevisibilidade. Esse choque com o imprevisível, que desestabiliza a sua percepção da mundanidade, reflete uma dinâmica que permanece relevante até hoje, apontando para a comodidade da vida idealizada, focada exclusivamente nas expectativas familiares e a fuga da verdade à sua volta.

Esse momento epifânico expõe como o ser humano, em sua tentativa de controlar a vida, é muitas vezes confrontado com sua própria fragilidade diante de um mundo caótico e inesperado. O homem desprovido de visão faz Ana perceber sua tamanha cegueira diante do mundo, pois vivia sua vida de maneira tão fechada, para dentro de si, que não conseguia perceber o mundo que a cercava, reconhecendo, então, a ilusão do controle que difundia na sua existência.

As personagens clariceanas, em grande parte de suas narrativas, iniciam suas jornadas profundamente imersas em um cotidiano rotineiro e aparentemente estável. No entanto, a autora, ao longo da narrativa, desconstroi essa estabilidade ao introduzir momentos de ruptura com a realidade, conduzindo suas personagens a um estado de lucidez que culmina no “estado epifânico”.

Por meio de um monólogo interior da personagem Ana, o leitor é conduzido a uma compreensão mais profunda de seus conflitos internos, que são produzidos por meio da técnica do fluxo de consciência, este amplamente utilizado por Clarice Lispector, busca reproduzir em tempo real da narrativa os pensamentos e percepções das personagens, muitas vezes de forma espontânea e desordenada. Essa técnica permite uma imersão direta na subjetividade de Ana, revelando suas inquietações, reflexões e sentimentos de maneira íntima e intensa.

O título do conto, “Amor“, vai além de uma simples expressão de sentimento, sendo também uma metáfora para a entrega do ser humano à aceitação das ambiguidades da vida, às diferenças que nos tornam frágeis e, paradoxalmente, nos cegam para a condições que nos cerca. Nesse processo, o indivíduo tende a idealizar sua vida, criando uma fachada de perfeição que, na maioria das vezes, é distante da autenticidade.

O estado de epifania vivido por Ana, portanto, revela o confronto entre a visão de mundo que ela havia construído e a realidade que, até então, evitava ou ignorava inconscientemente. Nesse contexto, Benedito Nunes em O Drama da Linguagem. Uma Leitura de Clarice Lispector, oferece uma interpretação esclarecedora:

“O núcleo da história desse conto é aquele momento de tensão conflitiva, extensa e profunda, que se estabeleceu entre a personagem e o cego, e logo entre ela e as coisas todas. O cego é, na verdade, o mediador de uma incompatibilidade latente com o mundo que jaz no ânimo de Ana” (NUNES, 1989, p. 81).

Este conto, embora com uma estrutura narrativa aparentemente simples, explora temas profundos como o cotidiano e a fragilidade da existência, revelando o controle pessoal exercido pela personagem para evitar enxergar ao seu redor. A epifania vivenciada por Ana, ainda que breve, rompe com a sua vida confortável e a desperta para as inquietações das mazelas inerentes à condição humana. Clarice Lispector, com sua singular sensibilidade literária, utiliza esse processo de iluminação interior em suas personagens para provocar uma conexão intensa com o leitor, e, muitas vezes, despertando nele, o também um estado semelhante de epifania e uma nova percepção da realidade.

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